quinta-feira, 4 de novembro de 2010

À procura de qualquer coisa que sobreviva à própria vida - Vol. II

Women Without Men abriu o penúltimo dia do festival. Inês de Medeiros falou sobre o filme de Shirin Neshat, artista iraniana reconhecida pelos retratos de mulheres que fez para a série The Women of Allah. Esta é a primeira longa metragem da realizadora, onde procura contar a História do Irão no feminino, tendo em conta as dificuldades que existiam ainda antes da Revolução Islâmica.
"Não avaliem um presente sem ter em conta o passado", aconselha Inês de Medeiros. Este período dos anos 50 que é representado no filme significa um momento de transformação, de busca de identidade e de libertação do país, ao qual se seguiu uma ditadura militar que veio impôr a ocidentalização a toda a sociedade.

As poesias e canções iranianas estão sempre presentes, bem como uma atmosfera que a realizadora portuguesa remete para um universo sul-americano - de bruxarias e jardins meio encantados.  
A identidade destas mulheres, que parece estar em plena reformulação, é sempre definida em função de um homem. Sem isso elas ficam nuas, sem identidade. A prostituta, Zarin, já não existe como pessoa - está vazia, à espera de ser purificada ou engolida pela natureza. Munis morre como pessoa e nasce para uma ideologia: "Para fazer parte da sua realidade tem que desaparecer, tem que deixar de existir como ser humano, como mulher". Faezeh passa de uma inocência para uma perversão.

Cada uma vê uma coisa diferente, cada uma perdeu aquilo que tinha, e Neshat diz-nos, de uma forma poética, que sabemos a continuação da história, as suas consequências. O surto de mulheres iranianas no cinema e na arte em geral não parece ser, para Inês de Medeiros, razão para falar especialmente de etiquetas como "cinema/arte feminino/a". Há arte feita por pessoas, com experiências de vida e histórias diferentes, à luz das quais o estilo e os temas tratados ganham todo o sentido que podem ter.

Gonçalo M. Tavares apresentou 10 to 11 de Pelin Esmer. O filme conta a história de um coleccionador obsessivo, Mithat. Esta personagem, representada pelo avó da realidadora, parece anular as outras - trata-se de alguém que procura reter o passado através de um registo orgânico, que ocupa muito espaço, quer físico quer emocional, e acaba por não deixar lugar para mais nada. Até a sua circulação entre os caixotes e elementos vários que integram a colecção se faz com dificuldade, constituindo um obstáculo que suplanta a velhice e que, às tantas, deixa o seu cérebro "impedido de circular no presente".
O escritor sublinhou o contraste entre a Natureza e a colecção, que parece sobreviver a terramotos e infiltrações, mas não resiste à "infiltração humana". Afinal ela não está completamente protegida do exterior, nomeadamente se Mithat quiser garantir que ela continua mesmo depois da sua morte - e uma colecção tem que continuar, ela "só faz sentido porque falta sempre alguma coisa". Pode chamar-se-lhe um mecanismo de defesa em relação à mortalidade, uma certa obsessão pela ordem, ou até mesmo uma fuga dos afectos. 

"Um filme é bom quando somos capazes de ver um monte de coisas que não estão lá".
 De resto, olhar para uma colecção é um pouco assim também: "o que é ouro para um é lixo para outro e o que é ouro num determinado momento, com o tempo também se torna lixo".

Mas a colecção não pode ser dividida, o que significa que tem que haver um escolhido, um herdeiro: e esse é o verdadeiro desafio do coleccionador que se apercebe de que, entre todas as coisas que foi capaz de conservar ao longo do tempo, a própria vida é algo que lhe escapa.

A sessão de encerramento trouxe Fantasia Lusitana de João Canijo ao Auditório do Museu de Portimão, com a presença do realizador, que conversou com o público no final da sessão. Às imagens de arquivo, pontuadas pela música, pelas mensagens de propaganda de Salazar e pelo tom cómico de António Lopes Ribeiro, juntam-se textos de Alfred Döblin, Erika Mann e Antoine de Saint-Exupéry, lidos pelas vozes dos actores Hanna Schygulla, Rudiger Vogler e Christian Patey. "Como é que a guerra passou por Portugal sem deixar marcas?" é a pergunta a que o documentário procura dar resposta.

Finda a discussão, foram duas as questões que ficaram a pedir uma outra conversa: em primeiro lugar, haverá outras imagens que possam servir de contraponto ao que é apresentado e assim contornar uma certa unilateralidade para a qual alguém chamou a atenção? Imagens em movimento para além das que são apresentadas no filme não existem, disse João Canijo, eles bem procuraram. Mas sobram ainda algumas fotografias. Em segundo lugar, será que mudámos muito desde então ou continuamos iguais? As reacções ao documentário no estrangeiro mostram que é fácil a confusão do passado com o presente.


Talvez seja caso para procurar novas respostas para a colecção. As conversas sobre as "Visões do Sul" despediram-se assim, depois de se ouvir "Lisboa Não Sejas Francesa" e de relembrar tempos idos. O filme vencedor do Prémio do Público, José & Pilar de Miguel Gonçalves Mendes, foi a última sessão desta segunda edição, exibido no domingo, dia 31.  Como se costuma dizer, para o ano há mais.

Fotografia: Jorge Godinho

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