sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Visões do Sul ultrapassa dobro de espectadores da primeira edição


Foram 1927 os bilhetes emitidos para a Mostra Internacional de Cinema de Portimão Visões do Sul, mais 121% do que o total de espectadores da sua primeira edição, em 2008.

A mostra, que decorreu entre 26 e 31 de Outubro no Auditório do Museu de Portimão, entregou o Prémio do Público ao realizador Miguel Gonçalves Mendes, pelo seu documentário José & Pilar, sobre José Saramago, votado pelo público da Visões do Sul, com uma pontuação de 4.85 numa escala de 1 a 5. O filme, exibido novamente no último dia do festival, recebe assim um prémio de 1.000€, atribuído pela Direcção Regional de Cultura do Algarve / Ministério da Cultura.

Em 2º e 3º lugares ficaram, respectivamente, Women Without Men, realizado pela aclamada fotógrafa iraniana Shirin Neshat, que nos apresenta a história pessoal de quatro mulheres no contexto histórico da revolução islâmica no Irão e Jaffa, the Orange Clockwork, de Eyal Sivan, que narra a história visual da famosa “laranja Jaffa” - uma indústria e um símbolo comum para árabes e judeus na Palestina -, cruzando as diferentes versões de palestinianos e israelitas sobre o seu percurso.

Inserida nas comemorações dos 150 anos do nascimento de Manuel Teixeira Gomes e tendo como inspiração as viagens do autor pelos países do mediterrâneo, a Visões do Sul foi produzida e programada pela Zero em Comportamento (organizadora do IndieLisboa). Entre os 13 filmes exibidos, incluíram-se produções do Líbano, Senegal, Irão, Brasil, Israel, Turquia, Tunísia, França, Espanha e Portugal, entre outros. Todas as sessões foram apresentadas e comentadas por um convidado, proporcionando um espaço de reflexão e encontro com o público após cada exibição. Os principais temas e ideias debatidas nestas várias conversas podem ser consultadas neste blog.

A programação da Visões do Sul incluiu também uma secção infantil – com curtas metragens de animação para crianças do ensino pré-escolar e do 1º ciclo – numa acção direccionada para os alunos de escolas do concelho de Portimão. Esta secção registou também um aumento significativo em relação à primeira edição, com 740 Bilhetes emitidos.

Quanto ao crescimento do número global de espectadores, José Gameiro, director do Museu de Portimão, considera que “foi, claramente, uma aposta ganha”. A Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Portimão Isabel Guerreiro reitera esta afirmação, garantindo que as Visões do Sul vão ter agora uma periodicidade anual: “A mostra foi um sucesso, o formato escolhido é perfeito, e esta vai ser agora uma aposta estratégica da Câmara”.

Fotografia: Jorge Godinho

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

À procura de qualquer coisa que sobreviva à própria vida - Vol. II

Women Without Men abriu o penúltimo dia do festival. Inês de Medeiros falou sobre o filme de Shirin Neshat, artista iraniana reconhecida pelos retratos de mulheres que fez para a série The Women of Allah. Esta é a primeira longa metragem da realizadora, onde procura contar a História do Irão no feminino, tendo em conta as dificuldades que existiam ainda antes da Revolução Islâmica.
"Não avaliem um presente sem ter em conta o passado", aconselha Inês de Medeiros. Este período dos anos 50 que é representado no filme significa um momento de transformação, de busca de identidade e de libertação do país, ao qual se seguiu uma ditadura militar que veio impôr a ocidentalização a toda a sociedade.

As poesias e canções iranianas estão sempre presentes, bem como uma atmosfera que a realizadora portuguesa remete para um universo sul-americano - de bruxarias e jardins meio encantados.  
A identidade destas mulheres, que parece estar em plena reformulação, é sempre definida em função de um homem. Sem isso elas ficam nuas, sem identidade. A prostituta, Zarin, já não existe como pessoa - está vazia, à espera de ser purificada ou engolida pela natureza. Munis morre como pessoa e nasce para uma ideologia: "Para fazer parte da sua realidade tem que desaparecer, tem que deixar de existir como ser humano, como mulher". Faezeh passa de uma inocência para uma perversão.

Cada uma vê uma coisa diferente, cada uma perdeu aquilo que tinha, e Neshat diz-nos, de uma forma poética, que sabemos a continuação da história, as suas consequências. O surto de mulheres iranianas no cinema e na arte em geral não parece ser, para Inês de Medeiros, razão para falar especialmente de etiquetas como "cinema/arte feminino/a". Há arte feita por pessoas, com experiências de vida e histórias diferentes, à luz das quais o estilo e os temas tratados ganham todo o sentido que podem ter.

Gonçalo M. Tavares apresentou 10 to 11 de Pelin Esmer. O filme conta a história de um coleccionador obsessivo, Mithat. Esta personagem, representada pelo avó da realidadora, parece anular as outras - trata-se de alguém que procura reter o passado através de um registo orgânico, que ocupa muito espaço, quer físico quer emocional, e acaba por não deixar lugar para mais nada. Até a sua circulação entre os caixotes e elementos vários que integram a colecção se faz com dificuldade, constituindo um obstáculo que suplanta a velhice e que, às tantas, deixa o seu cérebro "impedido de circular no presente".
O escritor sublinhou o contraste entre a Natureza e a colecção, que parece sobreviver a terramotos e infiltrações, mas não resiste à "infiltração humana". Afinal ela não está completamente protegida do exterior, nomeadamente se Mithat quiser garantir que ela continua mesmo depois da sua morte - e uma colecção tem que continuar, ela "só faz sentido porque falta sempre alguma coisa". Pode chamar-se-lhe um mecanismo de defesa em relação à mortalidade, uma certa obsessão pela ordem, ou até mesmo uma fuga dos afectos. 

"Um filme é bom quando somos capazes de ver um monte de coisas que não estão lá".
 De resto, olhar para uma colecção é um pouco assim também: "o que é ouro para um é lixo para outro e o que é ouro num determinado momento, com o tempo também se torna lixo".

Mas a colecção não pode ser dividida, o que significa que tem que haver um escolhido, um herdeiro: e esse é o verdadeiro desafio do coleccionador que se apercebe de que, entre todas as coisas que foi capaz de conservar ao longo do tempo, a própria vida é algo que lhe escapa.

A sessão de encerramento trouxe Fantasia Lusitana de João Canijo ao Auditório do Museu de Portimão, com a presença do realizador, que conversou com o público no final da sessão. Às imagens de arquivo, pontuadas pela música, pelas mensagens de propaganda de Salazar e pelo tom cómico de António Lopes Ribeiro, juntam-se textos de Alfred Döblin, Erika Mann e Antoine de Saint-Exupéry, lidos pelas vozes dos actores Hanna Schygulla, Rudiger Vogler e Christian Patey. "Como é que a guerra passou por Portugal sem deixar marcas?" é a pergunta a que o documentário procura dar resposta.

Finda a discussão, foram duas as questões que ficaram a pedir uma outra conversa: em primeiro lugar, haverá outras imagens que possam servir de contraponto ao que é apresentado e assim contornar uma certa unilateralidade para a qual alguém chamou a atenção? Imagens em movimento para além das que são apresentadas no filme não existem, disse João Canijo, eles bem procuraram. Mas sobram ainda algumas fotografias. Em segundo lugar, será que mudámos muito desde então ou continuamos iguais? As reacções ao documentário no estrangeiro mostram que é fácil a confusão do passado com o presente.


Talvez seja caso para procurar novas respostas para a colecção. As conversas sobre as "Visões do Sul" despediram-se assim, depois de se ouvir "Lisboa Não Sejas Francesa" e de relembrar tempos idos. O filme vencedor do Prémio do Público, José & Pilar de Miguel Gonçalves Mendes, foi a última sessão desta segunda edição, exibido no domingo, dia 31.  Como se costuma dizer, para o ano há mais.

Fotografia: Jorge Godinho

Histórias sobre um impostor, decisões difíceis e segredos que se deixam contar

No dia 29, no Auditório do Museu de Portimão, falou-se sobre o peso da verdade no seio de uma comunidade onde os interesses colectivos chocam, não raras vezes, com os individuais.

Enrico Marco, ex-presidente da associação de deportados espanhóis, embarca numa viagem de carro até à Alemanha, um regresso ao passado para apurar a verdade dos factos que adulterou durante anos, forjando-se como um sobrevivente aos campos de concentração. Aaron é um homem de família judeu ortodoxo que se vê dividido entre a forte atracção que sente pelo jovem empregado e o dever de resistir à tentação e provar a força da sua fé. Aicha é uma jovem curiosa, que desconhece a sua origem e destino, e cuja identidade está ainda por nascer. Três filmes muito diferentes na sua estética e linguagem abordaram o tema, que deu lugar a questões que atravessaram as várias conversas.
Leonor Pinhão foi a convidada da primeira sessão, que mostrou o documentário Ich bin Enrico Marco, de Santiago Fillol e Lucas Vermal. Filmes como Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut e O Homem que Matou Liberty Valance (1962) de John Ford foram algumas das referências que mencionou, pela proximidade do tema. Admite que o filme está bem conseguido, pela forma como trata esta jornada de um homem que é, no mínimo, um óptimo actor: "Era muito fácil pegar neste documentário e torná-lo demagógico, mas isso não acontece".



O filme não tenta desculpar ou ilibar este homem que está plenamente convencido de que não cometeu qualquer crime ao criar uma história de vida fictícia, na medida em que se documentou devidamente, qual escritor de romances que estuda o universo da sua história.

Este comportamento parece-lhe sintomático de uma sociedade que precisa de heróis, custe o que custar, mas nem sempre está preparada para lidar com a fragilidade dos seus modelos humanos.





"Não podemos chegar ao fim da nossa vida e pedir desculpa.
Inventada ou não, esta é a vida dele."


Miguel Vale de Almeida falou sobre Eyes Wide Open de Haim Tabakman e a respeito dos finais infelizes que vão sendo hábito nos filmes que abordam a homosexualidade. A personagem principal debate-se com questões que põem em causa a sua fé e o facto de trabalhar num talho é importante para a história: ali, "a carne é morta de uma forma religiosa, sagrada". À medida que vacila na obediência à ordem estabelecida, suja-a e, assim, contamina a comunidade.

Curiosamente, nela habita um grupo de homens que estudam a Torah e o Talmud e elaboram todo um trabalho intelectualde discussão, em oposição ao que poderíamos chamar os dogmas do cristianismo que sobrevivem através de uma estrutura rígida.

"No judaísmo há lugar para a discussão da pecaminosidade de certas práticas".






Inês de Medeiros juntou-se à discussão, no seguimento de intervenções que se debruçaram sobre a questão da vida familiar - deveria ela ser a prioridade em detrimento do amor romântico (fácil de confundir com o desejo), um compromisso a respeitar para além da vontade individual? Na sua opinião, o filme mostra que a família e a relação do casal beneficia com a indiscrição do marido. Existe um regresso à ordem que, de alguma forma, quebra com a rotina.

Concluiu: "A vida é mais forte do que os nossos dilemas, mais ainda do que as próprias pessoas".

Possidónio Cachapa foi o convidado surpresa da útlima sessão da noite, que apresentou Buried Secrets de Raja Amari. O seu documentáro O Adeus à Brisa, integrou a programação da primeira edição das "Visões do Sul". Teceu elogios à actriz Hafsia Herzi (O Segredo de um Cuscuz de Abdel Kechiche), que desempenha o papel da curiosa Aicha e a sua fragilidade quase grosseira é encantadora, uma das principais forças do filme.
  



"As pessoas curiosas acabam por descobrir as coisas que querem e as que não querem".



Fotografia: Jorge Godinho