quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O (que se passa no) mundo está dentro de nós, mas está cá fora também

Ontem, no Auditório do Museu de Portimão, falou-se sobre liberdade, identidade e outros fantasmas. Nesta primeira sessão, que teve início às 19h15, foram exibidas as curtas metragensThe Mourning of the Merry Stork de Eileen Hofer e Un Transport en Commun de Dyana Gaye – duas ficções que reflectem, à sua maneira, sobre as fronteiras que recortam uma identidade desenhada por limites e possibilidades e que, uma vez ultrapassadas, nos podem mostrar facetas de nós próprios que desconhecemos.

Un Transport en Commun

“Quando viajamos isso reduz-nos à nossa insignificância, o que não tem que ser uma coisa má”
, disse Margarida Vilanova, que esteve à conversa com Miguel Valverde e com o público no final da sessão. A biografia de Manuel Teixeira Gomes subscreve esta ideia, que pode ser aplicada facilmente. Basta “respirar e olhar para o lado”, sugere a actriz. É interessante descobrir como é que as pessoas pensam, vivem e sentem no Líbano ou no Senegal, mas é ainda mais interessante perceber que não há verdades absolutas nestas coisas. No final de contas, as nossas histórias tão irremediavelmente diferentes estão tão próximas que a necessidade de as contar e a de as ouvir são, em última análise, coincidentes.
Eileen Hofer conta em The Mourning of the Merry Stork, a fuga de um casal do Líbano, com o culminar da guerra, e o nascimento de uma criança fora do seu “verdadeiro” país. A situação que a inspirou foi a que os próprios pais viveram, quando a mãe ainda estava grávida, e esta proximidade da experiência pessoal da realizadora desperta, em Margarida, uma certa curiosidade em relação a quem está por detrás da câmara. Enquanto actriz, a entrega à história e às emoções das personagens também lhe pede essa proximidade, por um lado, e alguma distância, por outro, mas valoriza o realismo. Relembra a personagem de Natacha do filme “O Milagre Segundo Salomé” (2004), de Mário Barroso, como uma das mais densas.

O trabalho do actor em Portugal foi um dos assuntos discutidos: porque não uma maior versatilidade encorajada à partida, que contemple mais do que uma maneira bonita de dizer as palavras e que implique uma relação mais viva com o espaço? De facto, às vezes o que se diz nem é o mais importante. Um bom exemplo disso é a musicalidade de Un Transport en Commun.
"Quanto mais pessoal é a história, mais as pessoas se relacionam."
Margarida Vilanova falou sobre o poder da música para expressar emoções e situações que transbordam a palavra: “Todas as personagens têm uma consciência política, e (no caso de “Un Transport en Commun”) dizem-no a cantar, o que é comovente”. Houve quem se manifestasse apontando para o facto de a música ser demasiado ocidentalizada, com uma sonoridade pouco africana. Há dois pontos importantes a ter em conta aqui: a realizadora, Dyana Gaye, vive em França e não é imune a uma cultura musical rica em influências, não raras vezes contraditórias (nesta comédia, a sua abordagem opera uma síntese interessante de vários estilos, aliando-os quer de forma complementar, quer como contraponto).

Por outro lado, se investigarmos com a devida atenção as origens do jazz, da música brasileira, entre outros, dar-nos-emos conta das fortes raízes que têm em África. Assim sendo, nada se perde, tudo se transforma e regressa, para partir de novo. Também é esta a história de Un Transport en Commun. As pessoas que partilham um táxi da estação de Pompiers, em Dakar, para Saint Louis não se conhecem. Não parecem ter muito em comum e reagem como se reage sempre que não se conhece bem uma pessoa – estranham, implicam umas com as outras, tentam conhecer-se melhor.

A propósito da liberdade, que se move com maior ou menor destreza entre as várias condicionantes – um contexto social, uma educação, a família, os amigos –, diz Margarida que ela nunca é total. Dizia também Saramago: “Vivemos rodeados de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais.”

E mesmo as notas dissonantes que se articulam com uma certa sonoridade, comprovada, uma herança que é o preço (que ora nos parece exorbitante, ora um bom negócio) a pagar por ter um lugar onde pertencer, fazem parte da melodia. A transgressão faz parte, como o que não somos ou achamos que não podemos ser está inevitavelmente ligado ao que somos. No final de contas, a escolha é o momento-chave que selecciona o que queremos ver. Não raras vezes, ela conduz-nos a um caminho que não vinha no mapa.

Mas se nos perdermos também não faz mal. Afinal de contas, a liberdade não é nenhum bicho de sete cabeças. E chegado o fim do percurso, as personagens despedem-se e seguem o seu caminho, mas é outra viagem que começa. Há filmes, como aqueles de que Margarida gosta, que além de reflectir sobre questões difíceis, não deixam de fora uma mensagem de esperança. Neste caso, “ambas as realizadoras são da geração de 70 e debatem-se com as mesmas questões, que marcam presença em cada um dos filmes.” O que é que se passa no mundo? Boa pergunta. É preciso ver o mundo para responder. Mas há uma outra coisa que eles também têm em comum: “O amor atravessa estes filmes e é ele que move as personagens e as faz sonhar com uma vida melhor – com um amor perdido, com uma família, com um lar”.

Margarida relembra: “A cultura faz avançar um país, abre os horizontes e deixa-nos pensar num mundo melhor”. Vamos pensar nisso.

Fotografia: Jorge Godinho

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