Agosto acaba amanhã, mas Agosto Azul continua.
Eis uma imagem das suas ninfas espreitadas por faunos: "Despedem-se com efeito, entre risos que mal ouvimos.
Ambas são trigueiras, conquanto mostrem nos braços uma alvura que os rostos não faziam suspeitar.
Diferem consideravelmente na idade. A uma delas alteia-se a camisa no peito com exuberâncias de amojo e na outra cai em pregas pelo grácil corpinho abaixo. Riem, riem muito, a porfiar qual delas há-de primeiro despir a camisa. É a mais nova que se decide: mostra no torneado tronco dois meios limões agudos onde a outra põe logo os lábios; depois esta abre também a camisa, soltando os túmidos seios maduros que a outra apalpa.
Recrudescem os risos... / Mas esta cena dura apenas momentos porque elas logo enfiam as saias brancas pela cabeça, perscrutando medrosas com a vista, em redor, e, erguendo-se, desaparecem por detrás das rochas". Quando há uns anos descobri a 3ª edição de Agosto Azul (Portugália, 1958), fiquei abismado. Não imaginava que em 1904 alguém contasse assim a sensualidade contagiante do oitavo e mais terrível dos meses.
Talvez ainda se saiba vagamente que Manuel Teixeira-Gomes foi Presidente da República (1923-1925). Mas já ninguém o lê. É um destino irónico: ele descreveu a sua experiência política como uma "servidão abominável", ao passo que os seus escritos são originais e vívidos. Combatendo o esquecimento, a Imprensa Nacional reedita agora as obras completas deste sensualista impenitente. O volume já publicado inclui Agosto Azul e também Inventário de Junho (1899) e Cartas sem Moral Nenhuma (1903). São divagações, monólogos epistolares, apontamentos memorialísticos, notas de viagem, esboços de contos. Agosto Azul é a odisseia de um viajante culto, de um hedonista peripatético, e tem as características luxuosas do decadentismo: uma pujante capacidade visual, sínteses inesperadas, metáforas e sinestesias e analogias. Em Teixeira-Gomes a intenção é tão dionisíaca como a linguagem, e ambas exaltam a Vida (com maiúscula): "a Vida entumesce e rola impetuosa, comovente, caudalosa, numa torrente inflamada de expressões coruscantes onde a língua eternamente se retempera". Há páginas sobre Wagner ou Weimar, mas o texto tem outra intensidade quando evoca uma iniciação sexual ou a "nudez espumante" de uma botticelliana. É uma exuberância estival quase adolescente que Urbano Tavares Rodrigues explicou assim: "O próprio «porquê» da obra literária, anterior ao propósito de comunicação, ao objectivo ideológico, pode bem ser que radique nas profundezas da ordem do desejo. A sua emergência está ligada à constituição do «eu» e ao seu confronto com o tempo, ao destino das pulsões, à satisfação das necessidades e à sua sublimação" (M. Teixeira-Gomes. O Discurso do Desejo, Edições 70, 1982).
Para Teixeira-Gomes, a beleza é uma categoria eterna. E grega.
Essa Grécia "que morreu sem ter envelhecido" e que nos deixou uma insuperável "dignidade física e espiritual". E onde estava a Grécia em 1904? Ele responde: "(...) julgo que a realização perfeita da paisagem marítima grega, tal como os poetas da antiguidade a conceberam, está no troço da costa do Algarve, (...) desde a barra de Portimão até ao fecho da baía de Lagos". Aí encontramos "praias de areia fina e doirada; rochas de pitoresco recorte emergindo do mar cerúleo; árvores floridas, como a amendoeira, debruçando-se sobre as águas tranquilas de curtas enseadas". O exultante paganismo de Teixeira Gomes é sexualmente volátil, como se vê numa ousada descrição dos marinheiros da esquadra inglesa ancorada em Lagos, que nadam em cacho e em convite: "Jogam-se à água, muitos com saltos de acrobatas, e uma chusma deles cerca-nos o bote lançando-lhe as mãos à borda como se o quisessem tomar de assalto.
/ É uma cena rara. /A um marujo ruivo, com o torneado arcaboiço de pião, que assomara ao bote e ficou debruçado, a meio corpo, damos-lhe vinho pela borracha.
Bebe sôfrego e sem jeito, com dois fios de púrpura a fugirem-lhe das comissuras dos lábios até encherem as conchas em que se lhe ajeita a carne no vão das clavículas". É o D.H. Lawrence português, com todas as virtudes e defeitos do epíteto. E eu não sabia que nós tínhamos um Lawrence.
sábado, 8 de novembro de 2008
«Agosto Azul», por Pedro Mexia
Ainda a propósito da participação por escrito de Pedro Mexia nas Visões do Sul, recordamos hoje um texto que o subdirector da Cinemateca publicou, em Agosto último, no Público, visando a obra de Manuel Teixeira Gomes. Este mesmo texto, citado por Miguel Valverde, serviu à conversa com José Júdice, que esteve no Museu de Portimão para comentar My Marlon and Brando, de Hüseyin Karabey. A ler:
Etiquetas:
Hüseyin Karabey,
José Júdice,
Manuel Teixeira Gomes,
Miguel Valverde,
Pedro Mexia
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Na publicidade da Antena 2 ao "Visões do Sul" ouvi ler "... Manuel Teixeira, escritor natural de Portimão". :)))
E na leitura sobre quem programou esta mostra, a locutora pontuou "... a Associação Zero, em comportamento." :)))
Para que conste.
Enviar um comentário