sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Visões do Sul ultrapassa dobro de espectadores da primeira edição


Foram 1927 os bilhetes emitidos para a Mostra Internacional de Cinema de Portimão Visões do Sul, mais 121% do que o total de espectadores da sua primeira edição, em 2008.

A mostra, que decorreu entre 26 e 31 de Outubro no Auditório do Museu de Portimão, entregou o Prémio do Público ao realizador Miguel Gonçalves Mendes, pelo seu documentário José & Pilar, sobre José Saramago, votado pelo público da Visões do Sul, com uma pontuação de 4.85 numa escala de 1 a 5. O filme, exibido novamente no último dia do festival, recebe assim um prémio de 1.000€, atribuído pela Direcção Regional de Cultura do Algarve / Ministério da Cultura.

Em 2º e 3º lugares ficaram, respectivamente, Women Without Men, realizado pela aclamada fotógrafa iraniana Shirin Neshat, que nos apresenta a história pessoal de quatro mulheres no contexto histórico da revolução islâmica no Irão e Jaffa, the Orange Clockwork, de Eyal Sivan, que narra a história visual da famosa “laranja Jaffa” - uma indústria e um símbolo comum para árabes e judeus na Palestina -, cruzando as diferentes versões de palestinianos e israelitas sobre o seu percurso.

Inserida nas comemorações dos 150 anos do nascimento de Manuel Teixeira Gomes e tendo como inspiração as viagens do autor pelos países do mediterrâneo, a Visões do Sul foi produzida e programada pela Zero em Comportamento (organizadora do IndieLisboa). Entre os 13 filmes exibidos, incluíram-se produções do Líbano, Senegal, Irão, Brasil, Israel, Turquia, Tunísia, França, Espanha e Portugal, entre outros. Todas as sessões foram apresentadas e comentadas por um convidado, proporcionando um espaço de reflexão e encontro com o público após cada exibição. Os principais temas e ideias debatidas nestas várias conversas podem ser consultadas neste blog.

A programação da Visões do Sul incluiu também uma secção infantil – com curtas metragens de animação para crianças do ensino pré-escolar e do 1º ciclo – numa acção direccionada para os alunos de escolas do concelho de Portimão. Esta secção registou também um aumento significativo em relação à primeira edição, com 740 Bilhetes emitidos.

Quanto ao crescimento do número global de espectadores, José Gameiro, director do Museu de Portimão, considera que “foi, claramente, uma aposta ganha”. A Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Portimão Isabel Guerreiro reitera esta afirmação, garantindo que as Visões do Sul vão ter agora uma periodicidade anual: “A mostra foi um sucesso, o formato escolhido é perfeito, e esta vai ser agora uma aposta estratégica da Câmara”.

Fotografia: Jorge Godinho

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

À procura de qualquer coisa que sobreviva à própria vida - Vol. II

Women Without Men abriu o penúltimo dia do festival. Inês de Medeiros falou sobre o filme de Shirin Neshat, artista iraniana reconhecida pelos retratos de mulheres que fez para a série The Women of Allah. Esta é a primeira longa metragem da realizadora, onde procura contar a História do Irão no feminino, tendo em conta as dificuldades que existiam ainda antes da Revolução Islâmica.
"Não avaliem um presente sem ter em conta o passado", aconselha Inês de Medeiros. Este período dos anos 50 que é representado no filme significa um momento de transformação, de busca de identidade e de libertação do país, ao qual se seguiu uma ditadura militar que veio impôr a ocidentalização a toda a sociedade.

As poesias e canções iranianas estão sempre presentes, bem como uma atmosfera que a realizadora portuguesa remete para um universo sul-americano - de bruxarias e jardins meio encantados.  
A identidade destas mulheres, que parece estar em plena reformulação, é sempre definida em função de um homem. Sem isso elas ficam nuas, sem identidade. A prostituta, Zarin, já não existe como pessoa - está vazia, à espera de ser purificada ou engolida pela natureza. Munis morre como pessoa e nasce para uma ideologia: "Para fazer parte da sua realidade tem que desaparecer, tem que deixar de existir como ser humano, como mulher". Faezeh passa de uma inocência para uma perversão.

Cada uma vê uma coisa diferente, cada uma perdeu aquilo que tinha, e Neshat diz-nos, de uma forma poética, que sabemos a continuação da história, as suas consequências. O surto de mulheres iranianas no cinema e na arte em geral não parece ser, para Inês de Medeiros, razão para falar especialmente de etiquetas como "cinema/arte feminino/a". Há arte feita por pessoas, com experiências de vida e histórias diferentes, à luz das quais o estilo e os temas tratados ganham todo o sentido que podem ter.

Gonçalo M. Tavares apresentou 10 to 11 de Pelin Esmer. O filme conta a história de um coleccionador obsessivo, Mithat. Esta personagem, representada pelo avó da realidadora, parece anular as outras - trata-se de alguém que procura reter o passado através de um registo orgânico, que ocupa muito espaço, quer físico quer emocional, e acaba por não deixar lugar para mais nada. Até a sua circulação entre os caixotes e elementos vários que integram a colecção se faz com dificuldade, constituindo um obstáculo que suplanta a velhice e que, às tantas, deixa o seu cérebro "impedido de circular no presente".
O escritor sublinhou o contraste entre a Natureza e a colecção, que parece sobreviver a terramotos e infiltrações, mas não resiste à "infiltração humana". Afinal ela não está completamente protegida do exterior, nomeadamente se Mithat quiser garantir que ela continua mesmo depois da sua morte - e uma colecção tem que continuar, ela "só faz sentido porque falta sempre alguma coisa". Pode chamar-se-lhe um mecanismo de defesa em relação à mortalidade, uma certa obsessão pela ordem, ou até mesmo uma fuga dos afectos. 

"Um filme é bom quando somos capazes de ver um monte de coisas que não estão lá".
 De resto, olhar para uma colecção é um pouco assim também: "o que é ouro para um é lixo para outro e o que é ouro num determinado momento, com o tempo também se torna lixo".

Mas a colecção não pode ser dividida, o que significa que tem que haver um escolhido, um herdeiro: e esse é o verdadeiro desafio do coleccionador que se apercebe de que, entre todas as coisas que foi capaz de conservar ao longo do tempo, a própria vida é algo que lhe escapa.

A sessão de encerramento trouxe Fantasia Lusitana de João Canijo ao Auditório do Museu de Portimão, com a presença do realizador, que conversou com o público no final da sessão. Às imagens de arquivo, pontuadas pela música, pelas mensagens de propaganda de Salazar e pelo tom cómico de António Lopes Ribeiro, juntam-se textos de Alfred Döblin, Erika Mann e Antoine de Saint-Exupéry, lidos pelas vozes dos actores Hanna Schygulla, Rudiger Vogler e Christian Patey. "Como é que a guerra passou por Portugal sem deixar marcas?" é a pergunta a que o documentário procura dar resposta.

Finda a discussão, foram duas as questões que ficaram a pedir uma outra conversa: em primeiro lugar, haverá outras imagens que possam servir de contraponto ao que é apresentado e assim contornar uma certa unilateralidade para a qual alguém chamou a atenção? Imagens em movimento para além das que são apresentadas no filme não existem, disse João Canijo, eles bem procuraram. Mas sobram ainda algumas fotografias. Em segundo lugar, será que mudámos muito desde então ou continuamos iguais? As reacções ao documentário no estrangeiro mostram que é fácil a confusão do passado com o presente.


Talvez seja caso para procurar novas respostas para a colecção. As conversas sobre as "Visões do Sul" despediram-se assim, depois de se ouvir "Lisboa Não Sejas Francesa" e de relembrar tempos idos. O filme vencedor do Prémio do Público, José & Pilar de Miguel Gonçalves Mendes, foi a última sessão desta segunda edição, exibido no domingo, dia 31.  Como se costuma dizer, para o ano há mais.

Fotografia: Jorge Godinho

Histórias sobre um impostor, decisões difíceis e segredos que se deixam contar

No dia 29, no Auditório do Museu de Portimão, falou-se sobre o peso da verdade no seio de uma comunidade onde os interesses colectivos chocam, não raras vezes, com os individuais.

Enrico Marco, ex-presidente da associação de deportados espanhóis, embarca numa viagem de carro até à Alemanha, um regresso ao passado para apurar a verdade dos factos que adulterou durante anos, forjando-se como um sobrevivente aos campos de concentração. Aaron é um homem de família judeu ortodoxo que se vê dividido entre a forte atracção que sente pelo jovem empregado e o dever de resistir à tentação e provar a força da sua fé. Aicha é uma jovem curiosa, que desconhece a sua origem e destino, e cuja identidade está ainda por nascer. Três filmes muito diferentes na sua estética e linguagem abordaram o tema, que deu lugar a questões que atravessaram as várias conversas.
Leonor Pinhão foi a convidada da primeira sessão, que mostrou o documentário Ich bin Enrico Marco, de Santiago Fillol e Lucas Vermal. Filmes como Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut e O Homem que Matou Liberty Valance (1962) de John Ford foram algumas das referências que mencionou, pela proximidade do tema. Admite que o filme está bem conseguido, pela forma como trata esta jornada de um homem que é, no mínimo, um óptimo actor: "Era muito fácil pegar neste documentário e torná-lo demagógico, mas isso não acontece".



O filme não tenta desculpar ou ilibar este homem que está plenamente convencido de que não cometeu qualquer crime ao criar uma história de vida fictícia, na medida em que se documentou devidamente, qual escritor de romances que estuda o universo da sua história.

Este comportamento parece-lhe sintomático de uma sociedade que precisa de heróis, custe o que custar, mas nem sempre está preparada para lidar com a fragilidade dos seus modelos humanos.





"Não podemos chegar ao fim da nossa vida e pedir desculpa.
Inventada ou não, esta é a vida dele."


Miguel Vale de Almeida falou sobre Eyes Wide Open de Haim Tabakman e a respeito dos finais infelizes que vão sendo hábito nos filmes que abordam a homosexualidade. A personagem principal debate-se com questões que põem em causa a sua fé e o facto de trabalhar num talho é importante para a história: ali, "a carne é morta de uma forma religiosa, sagrada". À medida que vacila na obediência à ordem estabelecida, suja-a e, assim, contamina a comunidade.

Curiosamente, nela habita um grupo de homens que estudam a Torah e o Talmud e elaboram todo um trabalho intelectualde discussão, em oposição ao que poderíamos chamar os dogmas do cristianismo que sobrevivem através de uma estrutura rígida.

"No judaísmo há lugar para a discussão da pecaminosidade de certas práticas".






Inês de Medeiros juntou-se à discussão, no seguimento de intervenções que se debruçaram sobre a questão da vida familiar - deveria ela ser a prioridade em detrimento do amor romântico (fácil de confundir com o desejo), um compromisso a respeitar para além da vontade individual? Na sua opinião, o filme mostra que a família e a relação do casal beneficia com a indiscrição do marido. Existe um regresso à ordem que, de alguma forma, quebra com a rotina.

Concluiu: "A vida é mais forte do que os nossos dilemas, mais ainda do que as próprias pessoas".

Possidónio Cachapa foi o convidado surpresa da útlima sessão da noite, que apresentou Buried Secrets de Raja Amari. O seu documentáro O Adeus à Brisa, integrou a programação da primeira edição das "Visões do Sul". Teceu elogios à actriz Hafsia Herzi (O Segredo de um Cuscuz de Abdel Kechiche), que desempenha o papel da curiosa Aicha e a sua fragilidade quase grosseira é encantadora, uma das principais forças do filme.
  



"As pessoas curiosas acabam por descobrir as coisas que querem e as que não querem".



Fotografia: Jorge Godinho

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

É difícil vender o que não se sabe que se tem

Alexandra Prado Coelho esteve no Irão na década de 90, no 10º aniversário da Revolução. Relembra a experiência como qualquer coisa muito diferente do que via no dia-a-dia. Tentou adaptar-se, mesmo sem conhecer bem os códigos, ao modo de estar que imaginava ser o mais apropriado para uma mulher naquele contexto. Mas a sua imitação provisória do que ainda não conhecia não passou despercebida, não se fundiu com o resto.
É difícil fugir ao que conhecemos e ver o que está à nossa volta com outros olhos que não os nossos, admite. Calcula que o Irão tenha mudado consideravelmente desde então, porém, há muitos aspectos que ainda permanecem. O que vemos em My Tehran for Sale de Granaz Moussavi é a luta de uma juventude por uma liberdade cultural e de expressão. Alexandra relembra uma entrevista que fez a dois jovens em que o mote era precisamente esse. Para além de uma vontade de libertação, existia neles a noção de que a liberdade em demasia poderia levar as pessoas à loucura – elas não saberiam o que fazer, como escolher.
Granaz Moussavi quis mostrar outras imagens do Irão, uma outra visão, diferente do que passa nas televisões, do que se inventa na ausência dos factos. O sofrimento da personagem principal, Marzieh, não é só o de alguém que precisa de sair de uma situação insustentável, mas também o de uma pessoa que nutre um amor profundo pelo seu país. Este é um sentimento que atravessa os iranianos, apesar das condições em que vivem e dos vários movimentos que procuram contrariar isso. Miguel Valverde deu o exemplo do hip hop iraniano, que se tem difundido através da Internet, com bastante sucesso em países como os Estados Unidos, a Austrália, a África do Sul, etc.
A música ocidental também marca presença no Irão e, segundo Alexandra Prado Coelho, o cinema, nomeadamente o mais comercial, não é inacessível. A jornalista conta que foi convidada para um jantar em casa de uma família iraniana, onde se falou de filmes que ainda não tinham estreado no cinema – entre eles Titanic de James Cameron – e que todos eles já tinham visto. Entre algumas contradições, há coisas que começam a mudar, às vezes de forma lenta, enquanto ainda pesa a tradição e uma certa saudade de tempos em que as coisas eram mais claras e a liberdade não estava suficiente próxima para poder ser, também ela, uma ameaça.
Fotografia: Jorge Godinho

Jaffa, a laranja protagonista

Margarida Tengarrinha, homenageada com a Medalha de Mérito Municipal Grau de Ouro pela Câmara Municipal de Portimão em 2005 e representante do Conselho Português para a Paz e Cooperação, foi convidada especial da sessão de ontem, que mostrou o documentário Jaffa, the Orange’s Clockwork de Eyal Sivan. O realizador israelita, professor de cinema em Londres, conta já com uma filmografia relevante, com vários documentários que abordam o conflito israelo-palestiniano.


Neste caso, como referiu Margarida Tengarrinha, a laranja é a personagem principal, tema ancestral e popular na representação da Palestina pela pintura, pela música, na memória dos seus habitantes e nas conjecturas feitas por outros países. Os quadros que vemos são, nas palavras dos artistas e estudiosos entrevistados, sobre a ideia de laranja, uma afirmação do lugar onde pertence aquele povo. "Durante muito tempo, Israel não existiu, só a tragédia”, contam.


Ao contrário do que é comum nos documentários, aponta Tengarrinha, aqui são as imagens que dão lugar às entrevistas: elas dominam o filme e os testemunhos dos entrevistados corroboram aquilo que elas mostram. A imagem que desmistifica, que esclarece e faz emergir a realidade, contrasta com a que serve a propaganda e cria um mundo ilusório (a propósito disto, ver também Fantasia Lusitana de João Canijo, que será exibido na sessão de encerramento de dia 30, sábado, às 22h).   

Jaffa, a laranja de toda a Palestina, chegou a ser das mais exportadas em todo o mundo. Em 1948, quando começaram os desentendimentos, ela ainda não era uma marca registada, mas, ainda assim, ela era para os citrinos o que a Coca-Cola era para os refrigerantes. A cidade de Jaffa, com os seus pomares, foi um lugar onde o trabalho era sinónimo de saúde, juventude e progresso – quase com um tom soviético e, na opinião de alguns, assustadoramente próximo de uma propaganda nazi.

Mas a certa altura deixou de se perceber qual o significado, ao certo, da palavra “Jaffa” – seria a laranja, uma cidade da Palestina, ou apenas uma palavra? A própria cidade foi apagada pela marca e a laranja tornou-se a principal referência de um país ao qual os emigrantes judeus diziam ter trazido “o progresso à desolação”. Contudo, foram os próprios israelitas que destruíram, a pretexto de eliminar a ameaça de atiradores que se escondiam nos pomares, essa fonte de riqueza que já existia antes da sua chegada. A laranja tornou-se assim uma imagem de morte e o tema virou-se contra eles.

Uma das grandes virtudes deste documentário está na beleza das suas imagens, diz Margarida Tengarrinha, licenciada em pintura na ESBAL, onde iniciou a sua luta contra o regime salazarista. Além disso, nenhum dos lados é favorecido em detrimento do outro: “A isenção deste filme é o que constitui a sua maior força.” Margarida esteve em Israel em 1976, quando o conflito já existia, e contou alguns episódios que comprovam quão enganadora pode ser a imagem que, à distância, se tem destes países.

Mas a laranja também simboliza a mulher, a relação com a terra e a fertilidade. O papel da mulher também foi discutido na conversa seguinte, com Alexandra Prado Coelho, após a sessão de My Tehran for Sale.

Votação do Público

A classificação provisória é a que segue:

1. José & Pilar - 4,85

2. Jaffa, the Orange's Clockwork - 4,06

3. Tehroun - 3,93

Lembramos que os boletins de voto são distribuídos no início de cada sessão e entregues no final, preenchidos de acordo com a vossa preferência.

O filme mais votado pelos espectadores será o vencedor do Prémio do Público Ministério da Cultura - Direcção Regional Cultura do Algarve será exibido no dia 31, domingo, às 21h30.

Em apenas dois dias “Visões do Sul” superam espectadores da primeira edição

No final do segundo dia, eram 1677 os bilhetes emitidos para a Mostra Internacional de Cinema de Portimão “Visões do Sul”, mais 92% do que no total da sua primeira edição, em 2008. A mostra começou na terça-feira, dia 26, com “José & Pilar”, de Miguel Gonçalves Mendes e termina no próximo domingo, com a exibição do filme mais votado pelo público. Todas as sessões decorrem no auditório do Museu de Portimão.

Inserida nas comemorações dos 150 anos do nascimento de Manuel Teixeira Gomes, a programação das “Visões do Sul 2010” é inspirada nas viagens do autor pelos países do mediterrâneo. Entre os 13 filmes exibidos, há produções do Líbano, Senegal, Irão, Brasil, Israel, Turquia, Tunísia, França, Espanha e Portugal, entre outros. Todas as sessões são apresentadas por um convidado que tem uma conversa com o público após o filme.

No sábado, dia 30, a festa de encerramento será no Cool Bar (traseiras do edifício Casa da Praia), na Praia da Rocha, a partir da meia-noite.

A identidade reinventada

Entre 1918 e 2008, Acácio Videira e a mulher dividiram as suas vidas entre Portugal, Angola e Brasil. Ainda que Maria da Conceição fale dessas terras como se coubessem em postais, o que fica para contar em forma de memórias, histórias, fotografias e excertos de filmes de Videira é suficientemente enorme para nos perdermos (e encontrarmos também). JP Simões esteve no Museu de Portimão, à conversa sobre o filme Acácio de Marília Rocha.

A realizadora foi à procura de qualquer coisa quando fez este filme – do tesouro de Acácio, como conta ao longo de uma viagem de comboio, que a ele lhe chama a atenção para o que foi vivido e em grande parte esquecido, e a ela lhe abre horizontes para uma outra forma de abordar a sua identidade e a do seu país.

O casal era vizinho da realizadora e relata aqui a sua vida itinerante, rica na exploração de diferentes culturas que em conclusão se interligam. Os tempos de Angola são os que Acácio relembra com maior nostalgia e gratidão.

As imagens das tribos, em sobreposição, evocam uma origem que também pode ser reinventada. De resto, a relação de Acácio e Maria da Conceição assemelha-se curiosamente à de José e Pilar que vemos no documentário de Miguel Gonçalves Mendes. Ela também é uma espécie de força motriz da relação e, neste caso, providencia um equilíbrio entre a sua tagarelice e os momentos de silêncio de Acácio. Por outro lado, a velhice deste homem contrasta com a vitalidade das imagens, comenta JP Simões. O entusiasmo com que falou do filme deixou transparecer uma auto-descoberta que se encontra com as descobertas de outros pelo caminho.
O músico, que além do seu projecto a solo integrou, nos últimos 16 anos, bandas como Pop dell’Arte, Belle Chase Hotel e Quinteto Tati, descreve o seu trabalho como “um trabalho essencialmente de auto-exploração”. De resto, a sua escolha para apresentar este filme não foi fruto do acaso. O avô era brasileiro, de Niterói, e a influência da música brasileira no seu estilo não escapa aos ouvidos mais atentos.

Entre algumas notas sobre a sua carreira, que se divide entre a música, a poesia, o cinema e outros voos, falou-se sobre a dificuldade de pensar as pessoas fora da cultura. As ideias de um povo, a sua arte e as suas práticas são aquilo que ele é, disse. E acrescentou ainda: “As opiniões das pessoas sobre as coisas dizem mais sobre as pessoas do que sobre as próprias coisas”.


 Fotografia: Jorge Godinho

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Um tipo de pobreza que não é de espírito

Será que as coisas mudam sempre em direcção ao ponto de partida?

Não, não vamos falar de revoluções, de ciclos viciosos, de quem é afinal o culpado – mas quase. Na opinião de Teresa Nogueira, representante da Amnistia Internacional que esteve à conversa com o público sobre o filme Tehroun de Nader T. Homayoun, exibido ontem, “enquanto cidadãos temos a obrigação de alertar as autoridades para as situações que não estão correctas e de exigir que o governo do país lhes ponha um fim”.  O tráfico de pessoas (com cerca de 2,4 milhões de vítimas de exploração sexual e agrícola, entre as quais muitas são crianças), constitui uma das práticas ilegais que mobiliza mais dinheiro, mais ainda que o tráfico de droga. O Engenheiro Guterres, Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, apontou para um total de 3,5 mil milhões de euros gastos na U. E. em tráfico de pessoas (2009).
A propósito destas questões, Tehroun, filmado às escondidas nas favelas de Teerão, conta uma história onde a pobreza obriga a comportamentos moralmente questionáveis e onde a vida humana vale aquilo que pode valer, em função de outras prioridades que se jogam consoante o poder ou vulnerabilidade de cada um.

A selva urbana retratada acolhe injustiças não muito diferentes das que podemos observar todos os dias, nas ruas de cidades a Norte e a Sul, e o dilema mantém-se: a moeda que se dá a um mendigo é um auxílio pontual ou perpetua o problema? Teresa Nogueira não esquece que muitas pessoas são levadas a viver de uma forma marginal, sem que isso signifique que não têm sentimentos ou que o seu carácter é fraco. Ibrahim, a personagem principal, está numa situação dramática. A vida para ele nunca foi fácil, por isso viu-se obrigado a tentar a sorte noutra cidade, onde um pequeno esboço de sonho acaba por se transformar num pesadelo.

Quanto mais Ibrahim se esforça para encontrar uma solução, mais fundo é o abismo onde acaba por cair. Com a mulher grávida para sustentar, é obrigado a usar uma outra criança como isco para a piedade dos transeuntes e, apesar do filho não ser seu, a sua preocupação é genuína e leva-o a criar laços afectivos que o dividem em dois: pai por força das circunstâncias de uma criança que não é sua e modelo mal esculpido do pai que ainda não consegue ser para o próprio filho. Esta vida dupla também é retratada no que diz respeito a uma juventude que vive num impasse entre a tradição e uma nova sede de liberdade em My Tehran for Sale de Granaz Moussavi, que passa hoje às 21h45. 

Teresa Nogueira sublinhou a importância da acção do governo nestas matérias e, principalmente, o dever que cada um tem de não ser mero observador. Há medidas concretas que podem ser tomadas e a Amnistia é um exemplo de acção e de alerta e responsabilização dos governos, que lança o convite a cada um para ficar a conhecer melhor as suas iniciativas.

Fotografia: Jorge Godinho

Um José Saramago antes e depois de Pilar


Poucos minutos antes da abertura oficial, enquanto ainda eram comprados os últimos bilhetes para uma sessão esgotada, Margarida Vilanova partilhava ideias sobre o seu trabalho como actriz e, também, como pessoa.

Esse trabalho interior é como a viagem (uma vez) de um elefante, tal como a conta José Saramago no seu romance e também no documentário José & Pilar de Miguel Gonçalves Mendes, que passou às 21h30, com a presença do realizador.

José Gameiro, director do Museu de Portimão, deu as boas-vindas a uma sala cheia. O presidente da Câmara, Manuel da Luz, abordou o conceito das “Visões do Sul”, sublinhando que a iniciativa não deve ficar pela segunda edição. A visão, esse sentido tão preponderante nos tempos actuais, tem muito de curioso, já que, mesmo proliferando, “nem toda a gente consegue ver” num sentido mais profundo da palavra. “A esquizofrenia do ver é um bom exercício”, salienta Manuel da Luz, na medida em que ela possibilita, mais do que uma cidade educativa, uma cidade educadora.


De resto, o Sul não é apenas uma posição geográfica, é “um modo de estar e de viver”, e Miguel Gonçalves Mendes, que viveu grande parte da sua vida no Algarve, concorda com a afirmação.

José & Pilar
demorou quatro anos a ser feito e, pelo realizador, poderia continuar a ser editado durante mais seis meses, pelo menos – o que não é surpreendente se tivermos em conta que, depois de um longo período de filmagens durante o qual acompanhou a vida (mais que) atarefada de José Saramago e a mulher, Pilar del Rio (entre viagens a Espanha, Brasil, Finlândia e Portugal), recolheu 240 horas de imagens. As hipóteses multiplicam-se e os 125 minutos com que o filme ficou no final fazem Miguel Gonçalves Mendes interrogar-se a respeito do que ficou de fora ou se as suas opções foram as mais correctas.

"O que o levou a fazer um filme sobre José Saramago?" foi uma das perguntas do público. Miguel Gonçalves Mendes queria tirar a limpo algumas ideias. Já conhecia e admirava o trabalho do escritor, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1998, e também já o tinha convidado a ler um excerto do Memorial do Convento em D. Nieves, sobre a “palavra” saudade. Quando perguntou a Saramago se poderia filmar o seu dia-a-dia com Pilar, a palavra “intimidade” não o deixou muito confortável em relação à pertinência das coisas que o realizador queria registar. As filmagens avançaram devagar, contou aos espectadores que o aplaudiram de pé (entre um e outro “bravo!” que soava na fila da frente), e registaram vários eventos públicos. Mas entre os vários órgãos de comunicação social, o casal percebeu desde logo que o que aquela câmara estava a filmar era outra coisa.

 “Quis neste filme fugir a tudo o que fiz no anterior”.

Miguel Gonçalves Mendes quis captar um registo mais pessoal, que não encontrava noutras entrevistas: “A palavra dele estava mais que difundida”. De resto, para ficar a conhecer o pensamento de Saramago, nada como ler os livros. Este filme é uma outra coisa, uma outra perspectiva. Ele fala sobre a morte e sobre a urgência do tempo, diz o realizador, ciente de que essas são, no ponto de partida e de chegada, preocupações suas.
Um outro assunto é esta mulher, Pilar del Rio, e o papel importante que ela desempenhou na internacionalização da obra do marido. Saramago chegou a ver o filme, numa primeira versão com a duração de 3 horas, e a sua observação final foi “Isto é uma dedicatória de amor à Pilar”. Ela respondeu-lhe dizendo que a sua vida era uma dedicação de amor a ele.


“Passem a palavra, porque é para isso que os filmes se fazem. Para serem vistos".

Fotografia: Jorge Godinho

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O (que se passa no) mundo está dentro de nós, mas está cá fora também

Ontem, no Auditório do Museu de Portimão, falou-se sobre liberdade, identidade e outros fantasmas. Nesta primeira sessão, que teve início às 19h15, foram exibidas as curtas metragensThe Mourning of the Merry Stork de Eileen Hofer e Un Transport en Commun de Dyana Gaye – duas ficções que reflectem, à sua maneira, sobre as fronteiras que recortam uma identidade desenhada por limites e possibilidades e que, uma vez ultrapassadas, nos podem mostrar facetas de nós próprios que desconhecemos.

Un Transport en Commun

“Quando viajamos isso reduz-nos à nossa insignificância, o que não tem que ser uma coisa má”
, disse Margarida Vilanova, que esteve à conversa com Miguel Valverde e com o público no final da sessão. A biografia de Manuel Teixeira Gomes subscreve esta ideia, que pode ser aplicada facilmente. Basta “respirar e olhar para o lado”, sugere a actriz. É interessante descobrir como é que as pessoas pensam, vivem e sentem no Líbano ou no Senegal, mas é ainda mais interessante perceber que não há verdades absolutas nestas coisas. No final de contas, as nossas histórias tão irremediavelmente diferentes estão tão próximas que a necessidade de as contar e a de as ouvir são, em última análise, coincidentes.
Eileen Hofer conta em The Mourning of the Merry Stork, a fuga de um casal do Líbano, com o culminar da guerra, e o nascimento de uma criança fora do seu “verdadeiro” país. A situação que a inspirou foi a que os próprios pais viveram, quando a mãe ainda estava grávida, e esta proximidade da experiência pessoal da realizadora desperta, em Margarida, uma certa curiosidade em relação a quem está por detrás da câmara. Enquanto actriz, a entrega à história e às emoções das personagens também lhe pede essa proximidade, por um lado, e alguma distância, por outro, mas valoriza o realismo. Relembra a personagem de Natacha do filme “O Milagre Segundo Salomé” (2004), de Mário Barroso, como uma das mais densas.

O trabalho do actor em Portugal foi um dos assuntos discutidos: porque não uma maior versatilidade encorajada à partida, que contemple mais do que uma maneira bonita de dizer as palavras e que implique uma relação mais viva com o espaço? De facto, às vezes o que se diz nem é o mais importante. Um bom exemplo disso é a musicalidade de Un Transport en Commun.
"Quanto mais pessoal é a história, mais as pessoas se relacionam."
Margarida Vilanova falou sobre o poder da música para expressar emoções e situações que transbordam a palavra: “Todas as personagens têm uma consciência política, e (no caso de “Un Transport en Commun”) dizem-no a cantar, o que é comovente”. Houve quem se manifestasse apontando para o facto de a música ser demasiado ocidentalizada, com uma sonoridade pouco africana. Há dois pontos importantes a ter em conta aqui: a realizadora, Dyana Gaye, vive em França e não é imune a uma cultura musical rica em influências, não raras vezes contraditórias (nesta comédia, a sua abordagem opera uma síntese interessante de vários estilos, aliando-os quer de forma complementar, quer como contraponto).

Por outro lado, se investigarmos com a devida atenção as origens do jazz, da música brasileira, entre outros, dar-nos-emos conta das fortes raízes que têm em África. Assim sendo, nada se perde, tudo se transforma e regressa, para partir de novo. Também é esta a história de Un Transport en Commun. As pessoas que partilham um táxi da estação de Pompiers, em Dakar, para Saint Louis não se conhecem. Não parecem ter muito em comum e reagem como se reage sempre que não se conhece bem uma pessoa – estranham, implicam umas com as outras, tentam conhecer-se melhor.

A propósito da liberdade, que se move com maior ou menor destreza entre as várias condicionantes – um contexto social, uma educação, a família, os amigos –, diz Margarida que ela nunca é total. Dizia também Saramago: “Vivemos rodeados de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais.”

E mesmo as notas dissonantes que se articulam com uma certa sonoridade, comprovada, uma herança que é o preço (que ora nos parece exorbitante, ora um bom negócio) a pagar por ter um lugar onde pertencer, fazem parte da melodia. A transgressão faz parte, como o que não somos ou achamos que não podemos ser está inevitavelmente ligado ao que somos. No final de contas, a escolha é o momento-chave que selecciona o que queremos ver. Não raras vezes, ela conduz-nos a um caminho que não vinha no mapa.

Mas se nos perdermos também não faz mal. Afinal de contas, a liberdade não é nenhum bicho de sete cabeças. E chegado o fim do percurso, as personagens despedem-se e seguem o seu caminho, mas é outra viagem que começa. Há filmes, como aqueles de que Margarida gosta, que além de reflectir sobre questões difíceis, não deixam de fora uma mensagem de esperança. Neste caso, “ambas as realizadoras são da geração de 70 e debatem-se com as mesmas questões, que marcam presença em cada um dos filmes.” O que é que se passa no mundo? Boa pergunta. É preciso ver o mundo para responder. Mas há uma outra coisa que eles também têm em comum: “O amor atravessa estes filmes e é ele que move as personagens e as faz sonhar com uma vida melhor – com um amor perdido, com uma família, com um lar”.

Margarida relembra: “A cultura faz avançar um país, abre os horizontes e deixa-nos pensar num mundo melhor”. Vamos pensar nisso.

Fotografia: Jorge Godinho